31 de agosto de 2010

o teatro e o experimental

TEATRO DE VANGUARDA E SUA RELAÇÃO EXPERIMENTAL COM A TRADIÇÃO:
POR UM BIGODE NO BIGODE DE DALÍ




Carmen Filgueiras, escritora e Mestre em Teatro pela UniRio com a dissertação Adaptação cinematográfica de Hamlet por Michael Almereyda, reflexo de uma sensibilidade contemporânea


Como um reflexo da nossa condição pós-moderna e globalizada, vê-se em cartaz peças de diferentes tradições, desde as influenciadas pela mais radical das vanguardas até aquelas insossas que fazem um uso apático de elementos da cultura de massa. Assim, o teatro contemporâneo tem como característica singular abrigar uma imensa variedade de tendências e estilos.(1) Este ensaio quer pensar sobre o que é ser teatro experimental hoje.

Antes, porém, um episódio; no final da peça, a atriz muito branca, magra e de cabelos negros quer falar com os espectadores: “No meio da cena, alguém na platéia abriu o celular e aquela luz me desconcentrou. Por favor, por apenas uma hora, deixem seus telefones desligados...”. Em nenhum momento ocorreu àquela atriz com perfil de bad girl hollywoodiana que ela e a audiência já estavam desconcentradas há mais de meia hora! Mas isso ocorreu ao dono do celular e seu “quanto tempo falta pra acabar essa tortura?”. Essa anedota é para lembrar que o teatro-laboratório de Grotowski podia ser feito com um ator e um espectador apenas, que fosse, mas, sem a relação reciprocamente interessada entre público e cena, deixa de ser teatro, é outra coisa.

A única definição genérica admissível para o teatro de vanguarda talvez seja esta: é um teatro que se caracteriza pelo protesto contra as convenções, pela não aceitação da máquina do mundo tal como foi construída pelo homem e tal como ela constrói o homem.(2)
Gerd Bornheim, ao definir o teatro de vanguarda, sublinha a insatisfação do artista em meio ao status quo e sua necessidade hamletiana de colocar o mundo nos eixos. Mas, além deste, o filósofo também pontua um outro aspecto do teatro de vanguarda: a sua percepção sobre a subjetividade da verdade e de suas formas de representação. Nesse aspecto, é um teatro que experimenta vigorosamente linguagens novas contra o sentido e a máscara cristalizados e amorfos colados à tradição. Ainda assim, apesar da rebeldia inerente a esse teatro,

(...) não é um adolescente teimoso, mas é avô, mais velho que o nosso século, que vem se renovando com um rigor impressionante desde seu berço, desde a estréia, a 9 de dezembro de 1896, do Ubu Rei de Alfred Jarry (...) É um teatro que já se apresenta, portanto, com certa tradição (...) (3)


Uma tradição que herdou muito do espírito anti-academicista e pró-gênio do Romantismo... e a contradição do teatro de vanguarda contemporâneo está instalada! Se o seu telos sugere a busca pelo novo e original, a relação com Ionesco, por exemplo, será transgressora, necessariamente, pois a vanguarda precisa avançar por territórios ainda não conquistados, para além de Joyce. Porém, se olhar ao redor, perceberá um gosto pela novela oitocentista, pela representação fiel à natureza, por Dickens... E Dickens é ótimo, mas é desestimulante que essa seja a única percepção de mundo para alguém em 2007. A arte que promoverá o exercício de novas sensibilidades, que experimenta e faz o espectador experimentar diferentes perspectivas, é a vanguarda contemporânea e ela está quase encurralada entre a angústia de produzir o novo e o espírito reacionário de canonização do Modernismo.

O problema começou quando a arte tomou consciência da arte. Isso não está isolado do fato de a própria consciência ter tomado consciência da consciência e isso não está isolado do fato de que, a partir daí, o território estava livre para a arte da representação de tudo o que se pensava, sentia e julgava, pronto para que se jogasse na arena o primeiro gesto reativo, seja ao sistema, seja à própria arte. (4)


Gerald Thomas contextualiza a noção de vanguarda em um momento crítico, a década de 70, a partir da posição bem-humorada de Monty Python em relação à arte moderna e o seu iconoclasta “But... is it art?”. Ao mesmo tempo, para o autor, enquanto o universo for um problema de entendimento pessoal, inevitavelmente teremos a vanguarda. Ele pergunta por que a voz haveria de ser tão importante. “Não era justamente a voz humana que a Roda de Duchamp calava? Os ready-made existiram por quê? Pra que eu tenha a mesma relação romântica com eles como um careta tem com uma tela de Rembrant?”.(5) Claro que não, a arte que tomou consciência da arte, hoje, não repete o modelo totalitário e academicista com o qual se divorciou há mais de um século; ela experimenta, com respeito e sem cerimônia, e segue a viagem. Atento aos que renegam a vanguarda do passado, Thomas comenta: “Deve ser coisa de infiltradores ultra-vanguardistas, mas que posam como reacioários para reacenderem a chama da controvérsia com mais impunidade que os ‘loucos artistas’”.

O artista modernista manteve a sede romântica pelo original, mas ampliou radicalmente o esquema representacional da arte, liberando-a da exigência de parecer natural, e investiu nas pesquisas de estilos e sentidos. O elogio do subjetivo, ao invés da valorização do universal, refletiu a ruptura profunda com a tradição e a falta de conexão entre esta perspectiva de arte e a praticidade burguesa que percebe a vanguarda apenas em seu hermetismo. Para Fredric Jameson, a maioria das manifestações pós-modernistas “emerge como reações específicas às formas estabelecidas do modernismo dominante”(6) ou mostram o “esmaecimento de algumas fronteiras ou separações fundamentais, notadamente o desgaste da distinção prévia entre a alta cultura e a chamada cultura de massa ou popular”.(7)

A arte moderna pôde fazer uma crítica ao racionalismo crescente, mas precisava se manter hermética (e, desse modo, elitista) para continuar provocando o efeito desestabilizador do sentido. Segundo Jameson, a diferença entre modernismo e pós-modernismo não está em seus direcionamentos estéticos, mas na mudança de relação entre público e arte, pois, se as vanguardas sempre trouxeram a novidade através da ruptura e do choque na recepção, o pós-moderno e suas manifestações mais críticas podem se revelar bem sucedidos comercialmente! Ou seja, as camadas de interpretação não se localizam apenas no domínio das pesquisas sobre formas de representação, elas também percorrem o conteúdo ideológico da obra. Assim, Robert Stam afirma que os filmes do coreano Wong Kar Wai são, ao mesmo tempo, visualmente progressistas, mas ideologicamente reacionários e, conforme Susan Sontag, a MTV usa a linguagem estética das vanguardas, conservadoramente.

Toda experiência, que encontra ou não boa recepção, parte de um lugar de risco. Tem que haver risco! Claro que cada um define risco como quer, em um contexto e com uma recepção que se configuram a partir de combinações incalculáveis... Daí vem a relatividade, e com ela o problema, do que é, hoje, ser teatro experimental: um musical com Cláudia Raia pode ser considerado assim por conta das alterações na coreografia de Bob Fosse e, por outro lado, toda montagem de Beckett é experimental?

Acredito que esse impasse se resolva com a perspectiva de Grotowski, para quem o ator estritamente preocupado em agradar à platéia mudou de profissão. Com os exageros da indústria do entretenimento, enterrando o self sob tantos Big Brothers, o radicalismo da arte pessoal que os departamentos de marketing não conseguem entender nunca foi tão importante e necessário. E, assim pessoalmente, já percebi que quando eu defino algo como experimental, não somo nenhum outro adjetivo à coisa, porque ela está nascendo ali - antes de ser um nome, de pertencer a uma gaveta – e que ilumina algo novo aqui. Toda arte é experimental, nem toda experiência é arte.

 

NOTAS
(1) Ver BORNHEIM, Gerd. Questões do teatro contemporâneo. In: O sentido e a máscara.
(2) BORNHEIM, Gerd. Compreensão do teatro de vanguarda. In: O sentido e a máscara, p. 40.
(3) Idem.
(4) THOMAS, Gerald. Joguem essas pedras, meus amores In: Um encenador de si mesmo: Gerald Thomas, p. 130.
(5) Ibid, p. 132.
(6) JAMESON, Fredric. O pós-modernismo e a sociedade de consumo. In O mal- estar no pós-modernismo, p. 27.
(7) Idem.




BIBLIOGRAFIA:

BORNHEIM, Gerd. Compreensão do teatro de vanguarda. In: O sentido e a máscara. São Paulo: ed. Perspectiva, 1975.
GROTOWSKI, Jerzy. Em busca de um teatro pobre. São Paulo: Civilização Brasileira, 2000.
JAMESON, Fredric.O pós-modernismo e a sociedade de consumo. In: O mal- estar no pós-modernismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.
SONTAG, Susan citada por DENBY, David. The moviegoer – Susan Sontag´s life in film. In: New Yorker, 12/09/05, p.90 - 97
STAM, Robert. Entrevista ao O Globo, 11/02/07.
THOMAS, Gerald. Org: FERNANDES, Sílvia. GUINSBURG, J. Joguem essas pedras, meus amores. In: Um encenador de si mesmo. São Paulo: Perspectiva, 1996.
___________________
fonte: http://www.polemica.uerj.br/pol20/cimagem/p20_carmen.htm

Nenhum comentário: