17 de setembro de 2010

o desconhecido três

[semíramis]
rascunhos nas ruínas do templo            


                   I
Esse andar de abracadabras
na noite de flagelos.
Para você
esconderei a adaga
antes que no pescoço do cordeiro
ela faça seu caminho.
Não tenhas medo.
Os seios que alimentam o mundo
são os mesmos
que atordoam
seus quereres.
  
                            II

Assim quando
foi girada a ampulheta
e congelei meu grito
no espelho.
A vida escorrida
no torso suado
do cavalo negro.
                                 Corro.
O vento açoita-me o rosto
as ferraduras reviram
lúpulos e pedras
— mesmo assim, nada vejo.
Os grãos da ampulheta
deslizam na madrugada eterna
— agarro-me nas crinas
os galopes atravessando uma sucessão de Eras.
                                 Morro.

                         III

As horas pesadas
batem batem batem
numa bigorna
de sexo e dor.
Essas lâminas saem curvas
e amoldam
todas as Verônicas e Salomés.
Sou a anônima enfim liberta.
Não escrevo mais para ti
ou para outrem.
Escrevo para o Gozo
      ou para mim.
Eis-me mais que nua
     mais que falanges
     mais que um futuro cadáver ao sol.
Eis-me íons
      sêmen
      plasma.
                                 fim

                      IV

O que restou?
Resta-me agitar meus guizos
e rir de nós?
Não há claro-escuro
sombra-luz
sim-não
— porque eu diluí
na lucidez acre
todos os perfis e todas as respostas.
E,  porque:
uma chuva de semânticas
e adjetivos
não transformam em éden
este deserto.
Já não me restam nem restos
para sorrir.
A eterna ilusão escatológica
                que é viver.


                                 V
Aqui os derradeiros momentos
dos nossos apocalipses:
as bocas que entredevoram o medo
as carnes suadas nas carícias de beijos.
Quis teu corpo.
As palavras que, sei,
nunca irá dizer.
O chulo escondido nos sorrisos
a devassidão que não viverá.
Sou a puta que entregou-se aos homens
no templo da deusa
e que recolheu os óbolos
para as profecias.
Sou livre. E meu Destino sou eu mesma.
E tu, desejado no mezzo minuto
que passou
cumpre assim a sina dos fracos.
Ser alimento das piras
e arder na covardia.


[Seleção de poemas do livro Delivrário de amor e morte — opus nefandus]

16 de setembro de 2010

manifesto de rogério sganzerla

1 – Meu filme é um far-west sobre o III Mundo. Isto é, fusão e mixagem de vários gêneros. Fiz um filme-soma; um far-west mas também musical, documentário, policial, comédia (ou chanchada?) e ficção científica. Do documentário, a sinceridade (Rossellini); do policial, a violência (Fuller); da comédia, o ritmo anárquico (Sennett, Keaton); do western, a simplificação brutal dos conflitos (Mann).

2
– O Bandido da Luz Vermelha persegue, ele, a polícia enquanto os tiras fazem reflexões metafísicas, meditando sobre a solidão e a incomunicabilidade. Quando um personagem não pode fazer nada, ele avacalha.



3 – Orson Welles me ensinou a não separar a política do crime.


4 – Jean-Luc Godadrd me ensinou a filmar tudo pela metade do preço.


5 – Em Glauber Rocha conheci o cinema de guerrilha feito à base de planos gerais.


6 – Fuller foi quem me mostrou como desmontar o cinema tradicional através da montagem.


7 – Cineasta do excesso e do crime, José Mojica Marins me apontou a poesia furiosa dos atores do Brás, das cortinas e ruínas cafajestes e dos seus diálogos aparentemente banais. Mojica e o cinema japonês me ensinaram a saber ser livre e – ao mesmo tempo – acadêmico.


8 – O solitário Murnau me ensinou a amar o plano fixo acima de todos os travellings.


9 – É preciso descobrir o segredo do cinema de Luís poeta e agitador Buñuel, anjo exterminador.


10 – Nunca se esquecendo de Hitchcock, Eisenstein e Nicholas Ray.


11 – Porque o que eu queira mesmo era fazer um filme mágico e cafajeste cujos personagens fossem sublimes e boçais, onde a estupidez – acima de tudo – revelasse as leis secretas da alma e do corpo subdesenvolvido. Quis fazer um painel sobre a sociedade delirante, ameaçada por um criminoso solitário. Quis dar esse salto porque entendi que tinha que filmar o possível e o impossível num país subdesenvolvido. Meus personagens são, todos eles, inutilmente boçais – aliás como 80% do cinema brasileiro; desde a estupidez trágica do Corisco à bobagem de Boca de Ouro, passando por Zé do Caixão e pelos párias de Barravento.


12 – Estou filmando a vida do Bandido da Luz Vermelha como poderia estar contando os milagres de São João Batista, a juventude de Marx ou as aventuras de Chateaubriand. É um bom pretexto para refletir sobre o Brasil da década de 60. Nesse painel, a política e o crime identificam personagens do alto e do baixo mundo.


13 – Tive de fazer cinema fora da lei aqui em São Paulo porque quis dar um esforço total em direção ao filme brasileiro liberador, revolucionário também nas panorâmicas, na câmara fixa e nos cortes secos. O ponto de partida de nossos filmes deve ser a instabilidade do cinema – como também da nossa sociedade, da nossa estética, dos nossos amores e do nosso sono. Por isso, a câmara é indecisa; o som fugidio; os personagens medrosos. Nesse País tudo é possível e por isso o filme pode explodir a qualquer momento.

ESPAÇO RADAR

FLUXO_  ESPAÇO RADAR
ATELIER ABERTO
BATE-PAPO COM ALEXANDRE B + MARCONI MARQUES

O Atelier Aberto (http://www.atelierabertoguignard.blogspot.com/) é um projeto de Artes Plásticas realizado pela Escola Guignard/UEMG (http://www.uemg.br/unidade_guignard.php ), em Belo Horizonte. Consiste em convidar ou selecionar artistas plásticos formados na própria Escola para uma residência de um mês na galeria, com as portas abertas ao público (acadêmico ou não), para desenvolver uma exposição ao final desse período.
A última edição do programa Atelier Aberto foi feita entre 09 de agosto e 09 de setembro com residência de Alexandre B e Marconi Marques (http://marconimarques-artes.blogspot.com/ ), formados pela Guignard em 2005.
O FLUXO, através do Espaço Radar, fez alguns registros do processo deles antes da exposição, quando a galeria anda parecia estadia. Também registramos a exposição final- que aconteceu do dia 02 a 09 de setembro e, melhor do que isso, batemos papo com os dois sobre o processo e algumas questões que permearam essa experiência.
Por que falar do processo e não da exposição ou de questões relacionadas à estética do objeto de arte em si? Porque o que nos interessou nesse projeto foi um relato mais íntimo da experiência de convivência e construção que esses dois artistas tiveram para promover e realizar arte. Assim, o registro desse bate-papo, longe de parecer uma transposição da conversa (porque a atmosfera não pode ser traduzida), quer trazer ao público uma aproximação à natureza da produção de arte,  com o desejo de aproximarem de uma verdade nem sempre mostrada- seus questionamentos íntimos, exercício interno que se passa para a realização de um objeto e etc. Entendemos que essa abertura pode ser um facilitador para o entendimento e democratização da arte.

Boa leitura!
Ana Pedrosa


1_ A PROPOSTA E SUA RECEPÇÃO:
Alexandre_ Antes do ateliê aberto não havíamos trabalhado juntos porque nosso trabalho nunca teve uma aproximação conceitual, nem técnica- não era da mesma natureza. O legal foi justamente isso: criar uma situação de interdisciplinaridade porque talvez tivesse sido muito chato colocar duas pessoas com a mesma linha de trabalho. Foi uma situação inesperada.
 Marconi_ A primeira coisa que me veio à cabeça foi: o que será que o Alexandre está fazendo (?) Vi o portfólio dele e continuei assustado até que na primeira reunião ele trouxe algo que tinha a ver comigo que era a questão da  artesania. Isso me interessava e eu já tinha desenhado a idéia de fazer daqui uma carpintaria porque seria base para criar uma estrutura funcional e usar um material que eu trabalho, a madeira.
A_ Eu pensava em construir alguns móveis, eu ia levar para serem feitos pelo marcineiro- essa era minha proposta. O Marconi então falou para produzirmos tudo aqui, então fomos recolher o material.
M_  Quando nós entramos na galeria pensamos em como seria meu trabalho e o do Alexandre aqui e então pensamos em como trazer uma certa unidade sem escapar dessa coisa heterogênea que existe.




a galeria durante o processo do atelier


2_ A CONTAMINAÇÃO ENTRE ELES:
A_  Cada um manteve sua especificidade- o Marconi veio da idéia da carpintaria e eu vinha trabalhando nas minhas pesquisas a idéia da luz e das projeções e então conversei com ele de como seria a idéia da luz dentro da galeria porque eu precisaria que a luz ficasse mais reduzida. Assim, pensamos em como podíamos lidar com o uso da luz de forma que não atrapalhasse o trabalho dele nem o meu. Então o Marconi começou a trabalhar com isso, ele usou desse recurso da luz para começar a pensar inclusive trabalhos novos.
M_ Trabalhos novos dentro de uma linha que eu já vinha seguindo, dando prioridade a trabalhos que não precisam necessariamente da questão da cor. Então você vai ver trabalhos que são ensaios pictóricos e não a pintura- tem a escrita, eles são híbridos e não necessariamente a cor prevalece. Com essa questão da luz focada, a luz mais direcionada, eu poderia trabalhar uma certa virtualidade, lidar com outras questões que meu trabalho também comporta.
A_ Pra mim também: a questão da carpintaria me fez criar uma outra habilidade- eu não imaginava que, por exemplo, ia construir um banco ou uma mesa. Eu acho que a troca rolou por aí, essa contaminação.
M_ Alguns trabalhos meus surgiram sem eu esperar- a “Tenda” veio através de uma conversa com o trabalho do Alexandre: a exploração da luz, da sombra e uma certa virtualidade da coisa. Não é um trabalho que eu já tinha feito, é um trabalho novo que surgiu aqui- tem o uso da palavra como em outros mas é diferente.


 

 

  3_ O REFLEXO DESSA CONTAMINAÇÃO NO TRABALHO DE CADA UM E PARA A CONCEPÇÃO DO OBJETO/ EXPOSIÇÃO:
A_ Eu acho que o meu trabalho cresceu demais. Eu não faço tanto trabalho coletivo, então foi uma experiência ótima porque você está no seu ateliê, na sua casa e não tem esse trânsito tão grande de pessoas, idéias e olhares diferentes. Essa experiência influencia no objeto porque influencia você, então ultrapassa o objeto. Assim, o que gerou essa exposição foi só o resto de uma coisa porque a experiência é muito mais ampla, vai além.
M_ O próprio objeto não é só esse produto da exposição. A gente quis fechar algumas experiências, a idéia é usar a exposição pra isso- agora você vê o silêncio que precisa para qualquer exposição.
A_ Agora é o trabalho. Ficou um mês no processo e agora é ele- o trabalho.




 4_ A SINGULARIDADE DE UMA EXPERIÊNCIA COMO O ATELIER ABERTO PARA O PROCESSO CRIATIVO/ PRODUÇÃO:
M_ Tem trabalhos aqui que surgiram com suportes diferentes do que eu já tinha usado, eu aproveitei uma porta que estava jogada por aí... Trabalhar em cima da realidade que a gente tem na mão.
A_ Aquela animação veio de um desenho que eu já tinha feito, eu queria colocá-lo animado mas não imaginava que ia poder fazer isso aqui. Como tinha recurso disponível, eu pude fazer porque antes eram só idéias. E tem alguns trabalhos que eu não sabia se iam dar certo e tinha que ficar pensando em, se não desse, como eu ia fazer com isso.

5_ A EXPERIÊNCIA COLETIVA:
M_ Acho que essa experiência é rica pra gente, rica pra Escola- todo mundo ganha com isso. Só que às vezes assusta um pouco pela questão prática: a gente está produzindo e tem que parar um pouquinho pra receber, pra conversar.
A_ É um processo bem difícil. De repente você está produzindo e alguém fala que você podia fazer de outro jeito- você ganha muita opinião, muita idéia, umas são boas e outras te confundem.
M_ Eu venho de uma experiência de residências, sou do Coletivo Kaza Vazia (http://kazavazia.blogspot.com/ ), então isso me trouxe menos ansiedade que talvez eu visse no Alexandre. De certa forma eu trouxe essa experiência de fazer do lugar o lugar de receber.
Nos lugares de ocupação do Kaza Vazia, apesar de serem vazios, você acha elementos- o que não acontece muito num cubo branco-, então é diferente nesse sentido. Mas aqui, por exemplo, você vai trabalhar com o que tem na mão de qualquer forma, você vai estar convivendo- existem elementos humanos, você vai lidar com presenças humanas a sua volta-, com o material que tem, com a própria carga que a gente traz, as concepções que a gente já tem.
(...)
A gente conversava muito, discutia alguns trabalhos, resoluções técnicas.
A_ A troca foi legal porque foi bem natural.
M_ A gente respeitava o silêncio do outro, o tempo de cada um: eu estava batendo um prego e parava porque senão incomodava o Alexandre a desenhar_ coisas desse tipo.
A_ Esse processo de trabalhar junto é necessário mas não é único,  eu também tenho meu processo que é ali dentro do meu ateliê, eu, o silêncio- eu preciso daquilo pra funcionar.
Acho que essa experiência depende do artista e de cada projeto. Você tem que estar disponível, estar aberto pra isso. Existem as duas coisas: trabalhar junto e trabalhar sozinho.
Eu estou indo pra uma residência de três meses no Casa Tomada (http://casatomada.com.br/site/ ) lá em São Paulo, com seis artistas em uma casa. Acho que vai funcionar bem diferente daqui porque lá não é tão aberto, aqui tem muito aluno circulando, professor. Lá é mais restrito aos artistas de lá, é mais intimista.
M_ Aqui alguns professores até pegam elementos do nosso trabalho para tratar com a turma em aula.
A_ E vem nos abordar com questões técnicas mesmo, muitos alunos perguntaram: como você fez aquela animação, qual lápis você está usando...
M_ Alguns trabalhos geraram muita curiosidade: como foi feito, a engenhoca usada...
A_ Discussão conceitual teve, mas nenhuma muita profunda.

6_ O PROCESSO + O OBJETO FINAL:
M_ Em alguns trabalhos da exposição- tipo a “Carpintaria”- dá pra vivenciar no próprio objeto o processo também. Por isso deixamos algumas madeiras ali- é um exemplo de que ainda tem o processo aqui-, eu quis evidenciar que (esses objetos) são processos também, que não são só objetos de exposição.
A_ O que eu acho também é que os trabalhos já criaram vida, eles têm esse aspecto já de objeto pronto, ele pode ser transportado, ser apresentado em outros lugares.
Tudo aqui é uma tentativa- eu podia ter apresentado uma coisa que eu tentei e deu errado e também pode ser que esses trabalhos não sejam os finais, mas eu acho que do que eu me propus eu consegui alcançar, resolver. Aqui está pronto, agora daqui já vai gerando milhões de idéias naturalmente porque um trabalho vai puxando o outro.
M_ Isso evidencia o processo porque nada aqui veio do nada.
A_ Esses trabalhos são só uma parte da coisa. Como processo eles têm que ser mutantes também. Então teve a parte da produção do ateliê mas a proposta também era de que aquele ateliê acabasse- é parte do processo mudar, esse dinamismo é necessário. Então, encerrou e agora são os trabalhos que a gente colocou aqui- a galeria volta a ser galeria, apesar de ainda ter resto de processo, de não constituir como galeria stricto sensu.
No final da produção já estava lotado de coisas, uma bagunça. É bom também dá uma limpada pra você olhar pro trabalho, pra ver se ele funciona.
Coisas que poderiam dar muito errado por questões de tempo, de material, uma série de fatores, e acabou dando certo no final. Aquela coisa: você só tem praticamente uma tentativa, ou você faz de primeira ou então não dá mesmo e você não coloca pra expor.

7_ CONSEQUÊNCIA DESSA EXPERIÊNCIA PARA O OBJETO E A FORMA DE CONDUZI-LO:
A_ Por ser uma experiência adversa não muda sua concepção do seu trabalho, você continua mantendo sua poética, seus elementos.
Mudou o lugar, mudou o jeito de produzir, mudou o tempo, mas não muda o discurso do objeto- talvez um pouco, mas não radicalmente.
Tem coisa que você só vai se tocar depois de pronta, depois que você senta e olha com calma, no silêncio, mas isso (essa mudança) não é uma coisa radical mesmo porque eu não vou chegar aqui trabalhando há muito tempo com desenho e de repente eu vou fazer pintura, até porque não tem tanto tempo pra radicalizar assim.
Algumas coisas foram associadas à minha produção, por exemplo: eu fazer um banco com o Marconi e não mandar pra um marceneiro cria uma outra carga simbólica pra coisa, que é diferente de terceirizar. Esse tipo de coisa agregou muito à minha produção.

8_ A EXPOSIÇÃO FINAL E A ARTE CONTEMPORÂNEA:
M_ Um conceito comum pra exposição não existe, mas existem pontos:
. A espacialidade de cada obra e o espaço como um todo. A questão espacial acho que está bem evidente, você consegue ver a coisa como uma instalação aliada à virtualidade- que está no vídeo, nas sombras;
. a forma como eles foram concebidos, por exemplo a “Carpintaria” em si é um objeto totalmente aberto.
É interessante esse projeto na arte contemporânea porque a gente parte de linguagens bem primitivas- a gente desenha e pinta, então a gente está ligado a uma tradição também. Eu estou pintando parede- os homens das cavernas faziam isso. O Alexandre fez uma areia virtual só que ele desenhou com terra- tem coisa mais primitiva do que isso? Então nós estamos falando de tempos diferentes pra chegar numa arte que é considerada contemporânea porque é uma arte aberta, uma arte que não depende só da contemplação, ela tem outras questões por trás.
A_ Eu acho que no processo da arte contemporânea se cria muita tensão sobre ele, até porque hoje em dia o artista não se prende só a estilo, não tem mais gênero, não tem mais nada que identifica ele com o trabalho ou que amarra os trabalhos dele. O que amarra é justamente o processo, essa linha de pensamento que ele vai traçando, vai costurando entre os trabalhos.
Engraçado é que eu fiz uma pergunta pra um artista sobre o que ele costuma trabalhar, ele riu e falou que não gosta de responder isso. Então eu mudei minha pergunta: o que você está trabalhando ultimamente (?) porque acho que aí a resposta é mais honesta.
É essa coisa da mutação mesmo que é super importante hoje- abrir pra isso é uma forma de entender o trabalho também.

 

14 de setembro de 2010

o teatro brasileiro e a repressão

Teatro Anos 70
Luiz Carlos Maciel
Extraído de Anos 70 – Trajetórias, Iluminuras/Itaú Cultural, 2005

A década de 1970 foi o período mais repressivo do regime militar instalado no Brasil em 1964. A agitação estudantil de 1968 parece ter assustado a ditadura, que resolveu sufocar a qualquer preço qualquer indício de contestação. Depois do Ato Institucional n. 5, AI-5, as prisões se multiplicaram, as torturas se intensificaram, com métodos aperfeiçoados, e as execuções secretas tornaram-se prática comum.
Foi bem diferente do que havia acontecido após 1964. A ascensão da extrema direita ao poder parecia provisória, efêmera, um acidente de percurso a ser corrigido em breve pela marcha inexorável da história. Não houve, por isso, a transformação radical de corações e mentes que se iria verificar após 1968.
Aí sim. O AI-5 era o triunfo definitivo da repressão. Agora, não se sabia mais quanto tempo a ditadura ia durar. Aparentemente podia ser para sempre.
O plano da cultura, naqueles anos, se caracterizou pela presença absoluta da censura. Tudo era censurado – jornais, livros, filmes, mas principalmente peças de teatro. O crítico José Arrabal declara, em seu ensaio sabre o teatro brasileiro nos anos 70: "Nunca, em toda a história de nossa formação social, foram proibidos tantos textos dramáticos e tantos espetáculos de teatro”.
Pois é: a principal mania dos censores da época era censurar teatro. O número de peças que, no Brasil, foram cortadas, mutiladas e simplesmente proibidas parece incalculável.
Já em 1968, eu próprio tivera uma experiência desagradável. Dirigi o primeiro espetáculo da peça Barrela, de Plínio Marcos, no Teatro Jovem do Rio de Janeiro, com produção de Ginaldo de Souza e um elenco que tinha, entre outros, Milton Gonçalves e Joel Barcelos. Enquanto ensaiávamos, enviamos o texto para a censura federal, em Brasília. Os dias passavam e não tínhamos resposta. Contávamos que haveria muitos cortes porque o tema – marginais presos numa cela – ensejava uma abundância de palavrões no diálogo. A resposta chegou no dia da estréia: não havia cortes simplesmente porque a peça estava totalmente proibida! Não podíamos estrear apesar de tudo o que fora gasto em tempo, dinheiro, energia, entre outras coisas. Não nos conformamos e apresentamos o espectáculo clandestinamente, altas horas da noite, numa autêntica manifestação de protesto.
Sugeri ao produtor Ginaldo que montássemos, então, um texto antigo – As Relações Naturais, de Qorpo-Santo, um autor recém-descoberto que estava sendo considerado precursor do teatro do absurdo, avant la lettre. O texto foi para Brasília e passou. O espetáculo estreou no Teatro Glauce Rocha, no Rio de Janeiro, mas não foi longe. Os signos cênicos utilizados tinham uma intenção crítica ostensiva e, depois de duas semanas em cartaz, se tanto, o espetáculo também foi proibido.
Com duas proibições em poucos meses, achamos que tínhamos de mudar de vida! Mas muitos continuaram. A luta contra a censura passou a ocupar primordialmente quase todos os trabalhadores de teatro no Brasil. Os protestos em nada resultavam. Era preciso enganar a censura.
O depoimento de Fernando Peixoto fornece exemplos abundantes dessas tentativas de escapar das malhas da censura por meio de estratégias para "driblar" os censores, como a utilização de peças históricas para discutir a sociedade brasileira de então. As metáforas empregadas, porém, às vezes eram tão obscuras que tinham o defeito, conforme repara Amir Haddad em seus depoimentos, de não serem entendidas nem pelos censores nem pelo público...
Não se poderia esperar que, em tal situação de asfixia, o teatro brasileiro fosse conhecer nos anos 70 um período de grande criatividade, mas isso também aconteceu – e exatamente em relação à necessidade de lidar com a censura ditatorial.
Pode-se dizer, grosso modo, que, até 1964, floresciam no Brasil três tipos de teatro. O primeiro era o convencional, às vezes marcadamente comercial, às vezes pretensiosamente artístico, mas sempre visando agradar ao chamado grande público; era o preferido pela crítica oficial e o que, mais tarde, se convencionou chamar de "teatrão". As diferenças entre seus espetáculos eram de qualidade artística, e os critérios que os mediam eram puramente estéticos.
O segundo, que começava a ser criado pela geração mais jovem, era um teatro com preocupações sociais e políticas. Sua pretensão era contribuir para a transformação da realidade brasileira, sua humanização. Dois grupos, em São Paulo, se destacaram nessa linha de trabalho, norteada pela estética do realismo crítico: o Teatro de Arena e o Teatro Oficina.
Despontava ainda uma terceira orientação, a alternativa da vanguarda, que já rompia com os pressupostos realistas e representativos das outras duas direções em favor de uma estilização teatralista, apresentativa. Eu próprio, quando comecei a fazer teatro, em fins dos anos 50, preferi filiar-me a essa orientação. Os dois primeiros espetáculos que dirigi, em Porto Alegre, foram Os Cegos, de Michel de Ghelderode, e Esperando Godot, de Samuel Beckett – duas obras típicas da avant-garde européia do século passado.
A expansão da censura, nos anos 70, atingiu bastante o teatro comercial e esteticista, principalmente porque, além da repressão ideológica, exercia uma repressão moralista, puritana, que investia contra sinais de uma liberdade no palco que se tornava cada vez mais comum nos centros desenvolvidos, como a liberdade de linguagem – o escandaloso palavrão – e a mais escandalosa ainda moda da nudez.
Mas o principal alvo da censura ditatorial era, como seria de esperar, o teatro político, especialmente se ele ousava referir-se diretamente à realidade brasileira. O depoimento de Fernando Peixoto é particularmente rico e preciso nesse sentido. Tendo trabalhado no Arena e, principalmente, durante muitos anos no Oficina, ao longo de todo o período da repressão, ele nos fornece um retrato amplo, abrangente, sem retoques, dos acontecimentos e de sua conseqüência para o desenvolvimento do teatro brasileiro.
A orientação mais poupada pela censura autoritária era a do teatro de vanguarda, talvez porque os próprios censores não soubessem direito do que se tratava e tinham alguma dificuldade em entender. Essa situação favoreceu o desenvolvimento da vanguarda no Brasil, no começo ainda atrelada aos princípios da literatura dramática, conforme ocorre na avant-garde francesa de Ionesco, Adamov etc. Mas, logo em seguida, na tradição teatralista, do que Ruggero Jaccobi chama de a estética do “espetáculo absoluto”, de Gordon Craig, Antonin Artaud etc., ampliou seus horizontes.
A geração preocupada com um teatro de participação social passou a se dedicar cada vez mais à pesquisa da linguagem do espetáculo, segundo os princípios da tradição teatralista. Nessa conexão, o nome mais importante e a influência mais poderosa foram, sem dúvida, de Bertolt Brecht. O trabalho de Brecht não se deixava prender pelas limitações formais do realismo crítico e avançava ousadamente para a invenção de uma nova linguagem teatral que fosse mais adequada ao seu conteúdo crítico. Inovava a linguagem do espetáculo sem perder a conexão com o compromisso social e político. Mais até: a própria inovação devia servir a esse compromisso.
Na linha de frente da evolução do espetáculo, entre nós, o Oficina foi o responsável pelos desdobramentos mais importantes. Montou Brecht (Na Selva das Cidades, Galileu Galilei), mas também propiciou a presença do “Living Theatre”, de Judith Malina e Julien Beck, entre nós.
Em conseqüência de tudo isso, um dos desenvolvimentos mais interessantes do teatro brasileiro nos anos 70 foi a aproximação da intenção política com a investigação da vanguarda. O depoimento de Amir Haddad é particularmente revelador com relação a isso. Ele conta que, em experiência pessoal, tudo começou porque a censura proibiu seu espetáculo A Construção; ele resolveu então “desmanchar" o espetáculo que, após meses de trabalho, foi totalmente "desconstruído” – e acabou sendo liberado pela própria censura (!) apesar de um conteúdo mais radical do que o de sua forma primitiva.
Assim, conforme depoimento de Amir, foi a própria censura que criou as condições que vieram a propiciar os resultados mais efetivos de sua investigação cênica. O trabalho de "desconstrução" do espetáculo, o aproveitamento de um texto exacerbadamente reacionário, como Morrer pela Pátria, para inovar a comunicação teatral foram experiências marcantes e conseqüentes.
A trajetória de Amir começa no Oficina, passa pela Comunidade no Rio de Janeiro, para desembocar no Tá na Rua, em que o projeto de um teatro popular encontra sua expressão mais simples e direta.
Não foi, no entanto, a fertilização da preocupação social e política pela criação vanguardista, que pode ser vista no trabalho de Amir e principalmente, em função de sua influência, na de José Celso Martinez Corrêa, que determinou o caminho da nova geração. Esse caminho ganha definição no trabalho de Gerald Thomas e de outros jovens diretores de orientação esteticista semelhante. Para isso, eles contaram com o apoio da crítica teatral. A vanguarda teatralista avançou vigorosamente nas últimas décadas, apoiada pelos críticos de teatro que, caracteristicamente, abandonaram a velha postura estética de defesa do texto prévio, da literatura dramática, em favor de uma nova atitude de valorização do espetáculo puro, da teatralidade absoluta.
Foi um turning point curioso. Se, antes, os críticos rejeitavam um espetáculo porque não era suficientemente “fiel ao texto", agora o elogiam exatamente porque, nele, a importância do texto é menor em face principalmente da invenção visual. Os atores, por exemplo, agora são valorizados pelo trabalho corporal, pouco importando a deficiência das inflexões. Em conseqüência, os professores de expressão corporal passam a ser mais procurados do que os de técnica vocal. A ditadura do olho engolfa o teatro.
O depoimento de Mário Percentini aponta a orientação apolítica da vanguarda da nova geração do teatro brasileiro que se consolidou a partir dos anos 80. Ele declara que o teatro que procurou fazer nada tinha que ver com a intenção política evidente nos depoimentos de Peixoto e Haddad, não se identificando, portanto, nem com o racionalismo clássico do primeiro nem com a liberdade aparentemente até anárquica do segundo. Ele supõe uma nova vanguarda ritualística, litúrgica, como a tendência mais natural dos últimos anos.
Percentini tem razão. Ao contrário das preocupações sociais e políticas, a nova vanguarda, inspirada, por exemplo, em Grotowsky, que fala inclusive de urna “santidade” do ator, procura o significado metafísico do fenômeno da teatralidade pura. Ela pretende oferecer ao teatro uma missão mais ampla e mais profunda do que o simples compromisso político. Sua dimensão própria é espiritual, nada menos. Essa nova vanguarda interessou, além dos críticos, até aos monstros sagrados do teatro brasileiro, como Fernanda Montenegro, e hoje constitui praticamente um novo “teatrão", ao lado de seu antecessor esteticista e comercial.
Contudo, não se tornou hegemônica. Ao contrário do projeto de minha geração de estabelecer uma política cultural nítida, fundamentada numa estética correta, numa interpretação impecável da realidade, que nos levava a defender o tipo de teatro que queríamos e a exercer uma crítica cáustica, impiedosa de todos os outros, nosso momento atual, na aurora do século XXI e do terceiro milênio, parece dominado por um Zeitgeist pós-moderno disposto a impor um ecletismo compulsório.
Hoje, todas as orientações são válidas. Todos os teatros – o comercial, o esteticista, o político, as diferentes vanguardas etc. – coexistem de maneira mais ou menos pacífica, todos têm direito a um lugar ao sol, sem as cruzadas estéticas inspiradas pela programação de políticas culturais. Pode-se dizer até mesmo que a tensão inevitavelmente estabelecida entre todas essas tendências é mutuamente fertilizante.
É bom que seja assim. Os caminhos se fazem ao caminhar, os do teatro inclusive. Evidentemente, o teatro do mundo todo não sabe aonde vai. Mas nem a cultura em geral, nem a política, nem nada.
Assim vai o mundo, como diria Brecht...

fonte: http://tropicalia.uol.com.br/site/internas/leituras_marginalia3.php