A questão do poder e da denúncia na escrita
social e psicológica de São Bernardo
Alexandra Menezes Lopes
Filósofa, pós-graduada em Temas Filosóficos pela UFMG.
Colaboradora
SOCIAL E PSICOLÓGICO – O PROCESSO DE HUMANIZAÇÃO
1- Breve apresentação do aspecto social da obra de Graciliano Ramos
O livro de Graciliano Ramos é narrado em primeira pessoa por Paulo Honório, que propõem contar sua vida em retrospectiva. Através da escrita, o narrador/personagem tenta compreender, pelas palavras, não só os fatos de sua vida como também a esposa – Madalena –, suas atitudes, seu modo de ver o mundo e, como veremos mais detalhadamente, procura também uma espécie de reconciliação consigo mesmo.
Inicialmente, o narrador explica ao leitor como será seu processo de escrita, estreitando a linha, desde sempre tênue, entre narrador e leitor. No primeiro capítulo do livro, Paulo Honório narrador expõe sua idéia de fazer a obra pela "divisão do trabalho". Para tanto,
Padre Silvestre ficaria com a parte moral e as citações latinas; João Nogueira aceitou a ortografia e a sintaxe; prometi ao Arquimedes a composição tipográfica; para a composição literária convidei Lúcio Gomes de Azevedo Gondim, redator e diretor do Cruzeiro (S.Bernardo, 2007. p.7).
O personagem Paulo Honório aprendeu desde pequeno que só os poderosos são respeitados, daí a obsessão por ganhar dinheiro, por mandar. Nota-se tal comportamento já na posse da fazenda:
Pensei que, em vez de aterrar o charco, era melhor mandar chamar mestre Caetano para trabalhar na pedreira. Mas não dei contra-ordem, coisa prejudicial a um chefe. (S.Bernardo, 2007. p.33).
[...]
A verdade é que nunca soube quais foram os meus atos bons e quais foram os maus. Fiz coisas boas que me trouxeram prejuízo; fiz coisas ruins que deram lucro. E como sempre tive a intenção de possuir as terras de São Bernardo, considerei legítimas as ações que me levaram a obtê-las. (S.Bernardo, 2007. p. 45).
Por meio de um processo de metalinguagem, coloca-se o desenvolvimento da escritura em discussão. Segundo Antonio Candido (1992), o narrador sugere que o processo de elaboração é falho: “O resultado foi um desastre” (S.Bernardo, 2007. p. 9), pois mascara seu autor, ele é um homem rústico e não aquilo que estavam fazendo que ele parecesse ser:
A principio tudo correu bem, não houve entre nós nenhuma divergência. [...] Eu por mim, entusiasmado com o assunto, esquecia constantemente a natureza do Gondim e chegava a considera-lo uma espécie de folha de papel destinada a receber as idéias confusas que me fervilhavam a cabeça.
O resultado foi um desastre. [...] O redator do Cruzeiro me apresentou dois capítulos datilografados, tão cheios de besteiras que me zanguei. [...] Azevedo Gondim apagou o sorriso, engoliu em seco, apanhou os cacos de sua pequenina vaidade e replicou amuado que um artista não pode escrever como fala. (S.Bernardo, 2007. p. 8-9)
Logo decidiu fazê-lo por si mesmo:
Tenciono contar a minha história. Difícil. Talvez deixe de mencionar particularidades úteis, que me pareçam acessórias e dispensáveis. Também pode ser que, habituado a tratar com matutos, não confie suficientemente na compreensão dos leitores e repita passagens insignificantes. De resto isto vai arranjando sem nenhuma ordem, como se vê. Não importa. Na opinião dos caboclos que me servem, todo o caminho dá na venda. (p. 11-12)
A aridez e a simplicidade do sertanejo estão presentes na narrativa através da valorização da linguagem oral, expressa, inclusive, na dificuldade de lidar com “a literatura de Camões”. Mesmo assim, Paulo Honório se mete na aventura da escritura, que começa quando ele houve o pio de uma coruja. Neste momento, o ato de escrever é exigido não pela técnica, não pelo livro, mas por um movimento externo. Entretanto, é importante lembrar que, durante a narrativa, Paulo Honório deixa bem claro que vê as corujas como “aves amaldiçoadas”, por isso, a sua reconciliação consigo mesmo e remissão passava, necessariamente, por essa experiência dolorosa:
Aqui sentado à mesa de jantar, fumando cachimbo e bebendo café, suspendo às vezes o trabalho moroso, olho a folhagem das laranjeiras que a noite enegrece, digo a mim mesmo que esta pena é um objeto pesado. Não estou acostumado a pensar. (S.Bernardo. 2007. p. 12)
[...]
Com um estremecimento, largo esta felicidade que não é minha e encontro-me aqui em São Bernardo, escrevendo.
As janelas estão fechadas. Meia noite. Nenhum rumor na casa deserta.
Levanto-me, procuro uma vela, que a luz vai apagar-se. Não tenho sono. Deitar-me, rolar no chão até a madrugada é uma tortura. Prefiro ficar sentado, concluindo isto. Amanhã não terei com que me entreter. (S.Bernardo. 2007. p. 219-220)
Paulo Honório, então, se sente obrigado a escrever. Os dias perdidos só existem em relação à escrita: “[...] anteontem e ontem, por exemplo, foram dias perdidos. Tentei debalde canalizar para termo razoável esta prosa que se derrama como a chuva da serra, e o que me pareceu foi um grande desgosto” (S.Bernardo, 2007. p.216). Paulo Honório vive apenas encerrado no espaço ficcional, caso não escreva, ou se a escrita não se revela em uma tensão necessária, o tempo foi perdido.
Através desses fluxos de memória o narrador constrói a história e também se constrói, propiciando ao leitor a observação não apenas da realidade social que serve de referência, mas também de uma psicologia das personagens que representa.
João Pereira Pinto (1996) lembra ainda que na obra de Graciliano Ramos, de uma maneira geral, o leitor se depara com personagens que vivem um processo de profunda alienação, incapazes de se comunicarem e de se relacionarem com os outros homens, incapazes de intervirem e transformarem a natureza a sua volta. Pinto (1996) comenta que Graciliano Ramos não conta simplesmente histórias, mas expõe uma visão de mundo.
2- Estética e humanização
Segundo Schiller (1991), a estética possui uma função relevante que ultrapassa a mera indagação pelo belo. Por possuir a capacidade de transitar entre os sentidos e a razão, a estética pode auxiliar o homem a reintegrar sua humanidade perdida pelo processo de fragmentação da civilização especializada – possibilita uma espécie de (re)conexão entre homem e natureza. Na Carta VI (1991), o autor demarca como responsável por tal ruptura do homem com sua natureza a racionalidade científica e conseqüente fragmentação do conhecimento e a força reguladora do Estado, que submete a subjetividade do indivíduo a uma objetividade que o condiciona a exercer sua liberdade dentro dos limites desenhados pelo Estado. Este, por sua vez, hostiliza qualquer comportamento que opere fora de seus controles. Assim, o homem encontra-se sob imperativos abstratos que detonam uma corrosão progressiva de sua capacidade imaginativa, da fantasia, oprimidas pela abstração.
Na mesma medida, Silva (2005) menciona que Marcuse, no ensaio “Sobre o caráter afirmativo da cultura” de 1937, defende que o processo de fragmentação do conhecimento científico mediante a separação entre teoria e práxis advém desde o mundo clássico. O pensamento de Platão e Aristóteles fundamentaram a separação entre o útil / necessário – todo esforço prático que preza a conservação da vida – e do belo / fruição – como não se situa na esfera das coisas úteis e necessárias, sua apreensão só é possível através da “teoria pura”. Assim, beleza e felicidade só devem ser buscadas após a realização das necessidades vitais, já que transcendem o âmbito da vida material (SILVA, 2005. p. 30-31).
Esta cisão entre teoria e praxis é evidente no mundo moderno com a ascensão do sistema econômico capitalista, cuja hegemonia instaurada já na Revolução Industrial e exaltação da razão técnica promove uma reificação do homem, em que tanto a burguesia se dispensa da necessidade de refletir sua condição abastada por meio da miséria dos trabalhadores, como os próprios trabalhadores se vêem dispensados de analisar sua miséria mediante a reflexão do mundo como possibilidade de ser diferente. Em um contexto econômico demarcado pela desigualdade, a reivindicação de felicidade depõe contra a ordem estabelecida (SILVA, 2005. p 32). Assim, Silva (2005) concebe que Marcuse vê na arte uma “promessa de felicidade”, na medida que incita o olhar para uma nova maneira de organizar a sociedade. E, como promessa, reconcilia-se com a existência deplorável que vive a maioria dos homens (p.33).
Diante de uma sociedade que reprime de todas as formas possíveis as pulsões humanas, Marcuse, apoiando-se em Freud, afirma que estas pulsões sublimadas precisam se manifestar de outras formas que não seja necessariamente a ordem e desempenho produtivo (trabalho): a fantasia e imaginação. A fantasia e a imaginação podem resgatar o indivíduo deste processo de fragmentação executado pela civilização. Como afirma Silva (2005),
[...] se a realidade caracteriza-se pela não liberdade, a fantasia nega a não liberdade. A fantasia ou imaginação encontra uma expressão no sonho, mas concretiza-se na arte, na literatura, e nos mitos, que constituem meios pelos quais a linguagem do sonho ganha uma dimensão ao mesmo tempo objetiva e subjetiva. (p. 35)
A arte – o que obviamente engloba a literatura – pode ser concebida, sobre tal perspectiva, como um veículo de comunicação privilegiado onde a imaginação pode opor-se à realidade concreta e almejar um futuro diferente, realizável. Marcuse, citado por Silva (2005, p. 35), defende que a imaginação pretende reconciliar o indivíduo com o todo, do desejo com a realização, da felicidade com a razão. Mesmo que a realidade concreta demonstre que tal harmonia seja uma utopia, a fantasia insiste que ela pode tornar-se real. Nesse sentido, a idéia de reconciliação aludida por Marcuse trata-se da possibilidade de pensar uma forma de organização social menos repressora, onde seja possível conjugar o princípio do prazer com o princípio da realidade.
Alberti (1991, p. 68-69) compreende que a criação literária, além de ser uma atividade solitária, envolve uma “psicologia” do autor e dos personagens, brota da intimidade própria do indivíduo criador. A literatura, por não ter um compromisso social, possui plena liberdade de criação, o que lhe permite revelar sua loucura ou engendrar o prazer da dúvida. É um “discurso do desvio”, não mais narração de informações e tradição, mas criação íntima de possibilidades incomensuráveis. Benjamim (1969) corrobora tal concepção de Alberti (1991), por acreditar que no romance o indivíduo pode ser o próprio sujeito da criação, um espaço em que, na sua solidão, exprime sua profunda desorientação. Não se trata de narração de relatos ou (in)formação dos ouvintes, mas de uma linguagem diferenciada sem compromisso com a realidade propriamente dita.
Na literatura, o indivíduo pode expressar sua totalidade, seja no processo de criação, seja na leitura da obra. A literatura permite a reunião dos paradoxos da modernidade, da experiência de vida e do mundo e o incomensurável dando-lhe sentido e uma totalidade que parecia antes fragmentada. (ALBERTI, 1991)
Todos estes aspectos expostos acima são notórios no desenvolvimento de São Bernardo. A história é contada num tempo posterior aos fatos, ou seja, existe um Paulo Honório no passado, que vivenciou uma série de experiências (personagem), que, agora, num tempo atual, com cinqüenta anos, pretende escrever o livro (narrador). Paulo Honório narrador busca o entendimento na avaliação de si mesmo personagem, ao passo que, através da escrita, tenta se reconciliar com um universo de acontecimentos do qual se sente responsável e não há como altera-los. Para isso, se permite viajar pelas lembranças e, neste caso, transitar entre passado e presente. Na narrativa de São Bernardo, o narrador, além dos leitores, é também destinatário da história que tenta reeditar e, por isso, ele tem papel fundamental na leitura da obra.
A sugestão deste homem rústico não vem apenas pelos adjetivos impressos na personagem, mas também pela linguagem, que é seca e minimalista. A rude economia verbal do romance São Bernardo corresponde à linguagem ríspida que o narrador adota para gerenciar suas propriedades, seus negócios e para tratar as pessoas e bichos, que para ele pouco ou nada se diferenciam. Essa simplicidade, contudo, não nos leva a uma narrativa pobre, pelo contrário, a obra é carregada de digressões e processos metalingüísticos.
A problemática do homem com as pessoas que convivem está intimamente ligada à perspectiva da relação do homem e seu trabalho, e sobre elas o narrador diz:
[...] bichos. As criaturas que serviram durante anos eram bichos. Havia bichos domésticos, como Padilha, bicho do mato, como Casimiro Lopes, e muitos bichos para o serviço do Campo, bois mansos nos currais que se escoram uns com os outros, lá em baixo, tinham lâmpadas elétricas E os bezerrinhos mais taludos soletravam a cartilha e aprendiam de cor os mandamentos da lei de Deus.
Bichos. Alguns mudaram de espécie e estão no exército, volvendo a esquerda, vou vendo a direita, fazendo sentinela. Outros buscaram pastos diferentes (S.Bernardo. 2007, p. 217).
Na passagem acima o autor nos coloca face à problemática do homem como ser de cultura. Por este caminho, Pinto (1996) comenta que podemos considerar tanto o fenômeno da linguagem quanto o fenômeno da emancipação humana, afinal, o processo do trabalho é elemento privilegiado para humanização, uma vez que ambos mostram o grau de organização da comunidade humana.
Nesta ótica, são importantes algumas considerações prévias. Parece claro que existe certa preocupação com um processo de humanização em São Bernardo. Pode-se pensar que existe uma busca de humanização através da escrita, para confrontar a coisificação supracitada, que acomete as personagens, em especial Paulo Honório. Este representaria, pois, o senhor capitalista envolto num processo de humanização, na medida em que retoma através da escrita (um trabalho de manufatura) sentimentos sufocados pelo homem da produção.
Entretanto, falar de humanização é, necessariamente, caracterizar um processo que passa da natureza para a cultura e é, também, lidar com o problema da liberdade, do conhecimento que o homem tem de si mesmo, da sua realidade e da relação com os outros homens. Como comenta Pinto (1996, p. 14) lembrando Wittgenstein: “a linguagem demarca o tamanho do mundo humano”
A ambígua e contraditória conjunção entre o ambicioso fazendeiro e o escritor em crise, entre experiência e escrita, confere respectivamente ao narrador e à narrativa do romance uma imagem duplicada e distorcida. Pelo fato do narrador procurar se conhecer, se redimir e se reconciliar consigo mesmo pela obra que escreve, podemos dizer que ele está propondo uma ficcionalização de suas memórias e, portanto, conhece a si mesmo através da linguagem. Quando começa a escrever o romance, percebe-se vítima do mesmo processo de “coisificação” que submeteram os outros. Quando chega ao momento presente, tem um narrador / personagem cheio de justificativas que, acompanhadas de digressões, relativizam os fatos, criam metáforas e pede a participação do leitor, num processo em que, à primeira vista, só mostra a solidão e a inutilidade de Paulo Honório:
Cinqüenta anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida inteira sem saber para quê! Comer e dormir como um porco! Como um porco! Levantar-se cedo todas as manhãs e sair correndo, procurando comida! E depois guardar comida para os filhos, para os netos, para muitas gerações. Que estupidez! Que porcaria! Não é bom vir o diabo e levar tudo? (São Bernardo. 2007. p. 216)
Quando justifica para seus leitores as razões que o levaram a escrever, Paulo Honório fala de seu objetivo inicial de realizar uma obra coletiva segundo os princípios de divisão de trabalho de uma empresa capitalista. E nessa empreitada, o “empresário-escritor” deseja não apenas explorar a “mais-valia” de seus “colaboradores”, mas também um controle sobre a composição do “produto”, isto é, sobre o estilo, o assunto e como deverá ser feita essa escrita.(São Bernardo. 2007, cap. I)
O vaivém de Paulo Honório narrador e personagem é o que revelará seu verdadeiro passado. Esse desencontro, esse deslizamento da narrativa, é o que formará a tragédia \pessoal de Paulo Honório, mas ela poderia ser vivida por qualquer um. Em imagens sobrepostas, as mesmas mãos que destroem enquanto constroem a propriedade são as que restauram a humanidade perdida, escrevendo. São Bernardo livro e fazenda são espaços de efetiva troca de experiência.
Segundo Oliveira Neto (2007), São Bernardo se aproxima das obras explicitamente ideológicas, e esse conteúdo político estaria sempre acompanhando o autor. Desta forma, Graciliano Ramos tinha em vista contribuir com a arte para pensar a transformação da estrutura social. E ainda é conhecido que Graciliano julgava indispensável viver como um miserável para poder falar do ponto de vista do miserável. Sendo assim, a aproximação com o real parece ser a expressão estética de São Bernardo, com a certeza de que tal verdade jamais será atingida em sua essência. (p. 236)
QUESTÃO DE PODER
1- A figura do intelectual
Rogério Solva Pereira (2004) reflete sobre a representação da figura do intelectual brasileiro do início do século XX nas obras de Graciliano Ramos – o que auxilia a pensar as relações de poder presentes em São Bernardo e, por conseguinte, todo o processo que passa Paulo Honório e os outros personagens. Ele explica que o intelectual, dentro de uma concepção generalizada e acadêmica, é um especialista, um defensor das causas justas e universais, um homem envolvido nas causas centrais de sua contemporaneidade. O intelectual tem a impressão que o seu mundo está em desajuste, como Marx ou outros pensadores que fundamentaram a sua luta em um ideal que parece não estar no seu presente.
[...] o mundo justo e ordenado está num passado ditoso ou num futuro de justiça social. Sendo um homem público, que vive em seu tempo, e sendo também um escritor, o intelectual teria no romance um de seus gêneros privilegiados de expressão e comunicação. Romance e o intelectual estariam entrelaçados (PEREIRA, 2004. p.21).
Barthes diz que “A linguagem não pode ser considerada um simples instrumento utilitário ou decorativo do pensamento” (1988, p.32). Ele quer nos explicar certa unidade entre linguagem e pensamento, e no caso do escritor entre o pensamento e escrita. A escrita, assim, deixa de ser o veículo do pensamento ou de um saber transcendental e passa a ser constituinte do próprio pensamento. “Escrever é pensar e pensar é escrever” (PEREIRA, 2004. p.24). Foucault complementa esta visão da linguagem ao se desfazer da análise clássica do discurso, em que a linguagem é considerada ser o próprio pensamento, cujo funcionamento representativo não parte das próprias coisas, mas de uma ligação do signo com o que ele significa. A literatura adota o papel contestador do estatuto da linguagem reduzido pelos clássicos a discurso: o espaço literário não possui a linguagem como objeto que remete a um sujeito que fala, nem pode se limitar – como pretendeu a filologia moderna – a uma função significante cuja significação é considerada como determinada na consciência. (MACHADO, 2005. p. 87-108)
Para Barthes (1998), o escritor moderno “inscreve-se” no processo da escrita. “Escrever é [...] fazer-se o centro do processo da palavra, é efetuar a escritura afetando-se a si próprio, é fazer coincidir a ação e afeição, é deixar o escritor no interior da escrita” (BARTHES, 1988, p.37). Segundo Pereira (2004), não se escreve “para” tão pouco “sobre” alguém; escrever é afetar a si mesmo e fazer recair sobre si as conseqüências da palavra escrita. Daí o conceito de autoria que Foucault explica no texto Que é um autor?: uma função sócio-discursiva, que quer dizer que o autor é a instância responsável pelos efeitos do discurso que ele faz circular (FOUCAULT, 2001).
Nesta ótica, São Bernardo dialoga com esses conceitos na medida em que nos apresenta um narrador que se diz o próprio escritor do livro. O fazendeiro de São Bernardo, bruto e ignorante, se contrapõe com o fazendeiro escritor que tenta reunir as palavras para se redimir e se reconciliar consigo mesmo. É importante perceber que Paulo Honório narrador nos coloca diante desse paradoxo, pois, da mesma forma que se diz ignorante para cumprir o papel da escrita sozinho, rejeita, por fim, a ajuda dos outros personagens, reassumindo o papel do escritor.
É importante lembrar que esta época modernista estava engendrada em um espírito de desintegração da linguagem nacional e, portanto, em busca de uma expressão nacional. Assim, esse intelectual que Pereira (2004) tenta contextualizar é um indivíduo incapaz de lidar com a tradição de modo pacífico. O intelectual modernista recusa-se a levar avante o projeto da tradição, reconhecendo que esse projeto já não se adapta mais aos tempos em que vive. Alfredo Bosi (2002) é claro ao explicar a relação da literatura com a resistência política. Para ele, o literato tem papel fundamental na política, sendo assim, pensar o escritor, pensar o intelectual, é pensar na sua relação com o poder. Eis então o escritor nessa sociedade e sua arma: a palavra, o discurso.
A faceta mais característica do intelectual moderno parece ser essa preocupação em denunciar a partir de um lugar universal, a partir de um campo de luta universal. Ser de esquerda, diz Foucault (1979), foi durante muito tempo uma permissão para falar em nome do universal, e este lugar da enunciação foi ocupado também pelo intelectual. A origem do intelectual universal está ligada as suas relações com o poder e com as injustiças que ele vê no mundo: “Trata-se do intelectual no sentido político [...] aquele que faz uso de seu saber, de sua competência, de sua relação com a verdade nas lutas políticas” (FOUCAULT apud PEREIRA, 2004. p.32).
Pereira (2004) contextualiza a ação dos narradores de Graciliano Ramos usando de forma inteligente a metáfora de um quadro de Miguel de Cervantes, onde o autor de Dom Quixote aparece em uma postura pensativa, segurando uma pena e com olhar distante. Ao citar esse quadro, ele não somente reflete sobre o autor pensando sobre sua obra; mais precisamente, coloca em cheque o isolamento do indivíduo na criação artística. O quadro parece refletir sobre um tempo passado, num lugar onde a obra parece acontecer antes da escrita. Contudo, esse isolamento não o isenta de dramatizar sobre seu presente. Bakhtin (2002) propõe a atualidade do romance e ajuda a pensar:
O romance não é simplesmente mais um gênero ao lado de outros gêneros. Trata-se do único gênero que está envolto no meio de gêneros já há muito formados e praticamente mortos. Ele é o único nascido e alimentado pela era moderna da história mundial e, por isso, profundamente aparentado a ela, enquanto aqui os grandes gêneros são recebidos por ela como legado. (BAKHTIN, 2002. p.398).
Sendo assim, uma importante característica do romance é se preocupar com certa predileção e não como a epopéia, que se preocupa com profecias. “Épica se realiza nos limites do passado absoluto (...) Ela não diz respeito ao leitor e ao seu tempo real. Já o romance quer (...) predizer e influenciar o futuro real, o futuro do autor e dos leitores” (BAKHTIN. 2000, p.420).
Nessa perspectiva, não só São Bernardo como os demais romances de Graciliano Ramos, exploram uma posição social e a desenvolve como problema. Os personagens e os narradores têm grande dificuldade de se adequarem a seus respectivos espaços sociais. Ainda assim, nestes romances, explica Pereira (2004), são escritos sobre certa esperança. Eles se prestam a questionar o papel do intelectual e do escritor na vida concreta da sociedade brasileira, abordando questões de identidade, qual o futuro do Brasil, qual a melhor forma de organização, etc.
Ao contextualizar o romance de Graciliano Ramos nos anos que circulam suas primeiras publicações, veremos o fim do domínio das oligarquias locais, a maior centralização do poder e a conseqüente abertura das possibilidades políticas para novas camadas urbanas. A revolução de 30, lembra Pereira (2004), pode ser vista como um marco historiográfico anterior ao fechamento do Estado Novo e da ditadura getulista e, por outro lado, marco de abertura histórica.
2- Confissão e autobiografia
É notório que os narradores de Graciliano Ramos, especialmente o de São Bernardo, vivem em conflito com a palavra. Ele é incapaz de dominá-la, ela está sempre em rebelião.
Em São Bernardo, isso se manifesta na constante reflexão sobre a prática da escrita, momento em que o narrador interrompe o fluxo da escrita, interrompe o curso do narrado e toma o ato de escrever como tema. (PEREIRA, 2004, p.62).
Para Antonio Candido, “Ficção e confissão constituem na obra de Graciliano Ramos pólos que [o autor] ligou por uma ponte, tornando-os contínuos e solidários” (CANDIDO. 1992, p.69). Portanto, na obra de Graciliano, a ficção estaria cheia de elementos confessionais ou, como quer Pereira (2004), elementos autobiográficos.
Pereira (2004), dialogando com Wander Melo Miranda, pergunta: “O que há de ficcional na autobiografia?” e “O que há de biográfico na ficção?” (PEREIRA. 2004, p.115). A partir dessa pergunta, o estudioso de Graciliano questiona as fronteiras entre ficção e realidade e entre aqueles dois gêneros que a tipologia clássica havia formulado: a ficção e a biografia. Ainda neste diálogo, ele afirma que não se trata meramente de ver traço da realidade na ficção. Sua proposta é a partir da “impossibilidade inerente a linguagem de efetuar sem fraturas [...] a passagem do eu empírico ao seu textual” (MIRANDA apud PEREIRA, 2004, p.115).
Nesta perspectiva, São Bernardo pode ser lido a partir destas duas noções: “ficção autobiográfica” e “ficção e confissão”. Não se trata, contudo, lembra Pereira (2004), de reflexos da personalidade de Graciliano em sua obra, mais sim de se focar o romance como sendo construído como uma autobiografia ficcional do próprio autor ou de uma espécie de espírito do tempo.
Portanto, é importante perguntar: quem fala em São Bernardo? Será que há uma voz autobiográfica de Graciliano Ramos? Ou seria melhor se restringir (como é prática desde que Barthes e Foucault refletiram a respeito da “morte do autor”) a uma voz expressa ao longo das linhas: o narrador Paulo Honório? Neste ponto, Mourão (1969) faz a seguinte ressalva:
Antecipando-se a qualquer ação romanesca e sem se apresentar, uma voz que conta a história dos antecedentes da elaboração de São Bernardo começa a ser ouvida: ‘antes de iniciar este livro’ – é o que vamos lendo. Saindo desse primeiro lance de frase, somos levados a admitir que é Graciliano Ramos quem está com a palavra e dá início a qualquer coisa como um prefácio (MOURÃO. 1969, p.65).
Desta forma, colocada de lado a personalidade ficcional declarada do livro, temos uma autobiografia, ao menos no plano ficcional.
Pereira (2004. p. 118), ainda levanta a seguinte questão: “em que medida, contudo, São Bernardo pode ser tido como uma autobiografia?” Para explicar, ele propõe o seguinte raciocínio: suponhamos que Paulo Honório é autor-escritor-narrador-protagonista de São Bernardo, colocando de lado o fato de que se trata de um romance de Graciliano Ramos e, portanto, um livro de ficção em que autor e narrador se diferem. Propõe, também, ver a narrativa a partir do pacto autobiográfico que seu narrador/autor quer nos propor. Segundo ele, aceitar isso é admitir o dado frio de que temos uma pessoa que não é um personagem do romance, um certo Paulo Honório, que narra escrevendo os fatos de sua própria vida. A autobiografia é, segundo ele, tradicionalmente, a escrita da vida, isto é, o autor escreve sua própria vida, narrando-a. Sendo assim, o leitor diante dos fatos escritos sabe que pode recorrer a provas públicas e a outras fontes, em caso de alguma dúvida. Assim, na autobiografia, o que se escreve é verdade.
Aceitos esses argumentos, admite-se que Graciliano Ramos, em São Bernardo, realiza o gênero autobiográfico tradicional. Ou seja, ele usa procedimentos tradicionais da autobiografia para produzir efetivamente um romance. Logo no segundo capítulo, Paulo Honório “escreve-se” imóvel, solitário, pensativo, muito parecido com o trabalho de um escritor:
Aqui sentado à mesa de jantar [...] digo a mim mesmo que esta pena é um objeto pesado. Não estou acostumado a pensar. Levanto, chego à janela que deita para horta [...] volto a assentar [...] releio esses períodos chinfrins. Ora vejam se eu possuísse metade da instrução de Madalena, encoivarava isto brincando. Reconheço finalmente a que aquela papelada tinha prestígio (São Bernardo, 2007. p.12)
Esse período enuncia um dos temas principais do livro, a reflexão sobre o ato de escrever e a comparação de si com Madalena.
Segundo Pereira (2004), o escritor de São Bernardo é um homem dividido entre o desejo e a racionalidade instrumental. Como já dito, Paulo Honório abandonou a idéia de compor o livro como empresa capitalista, pois estava decidido a não mais fazê-lo pela divisão do trabalho especializado. Por fim, Honório optará pelo trabalho artesanal. Sendo assim, temos um personagem em processo, o homem especialista que deseja e um escritor sem domínio do que escreve.
Desde o começo, Paulo Honório deixa claro suas intenções como escritor, já imagina milheiros de livros vendidos. Contudo, se ao menos se tratasse de uma espécie de memorialismo, se ao menos fosse o conjunto da memória de um homem que como ele viveu no momento de transição da República Velha para o Estado Novo, com seus elementos da política e da economia, talvez este livro tivesse um possível apelo aos leitores. Mas não. É a vida privada tornada pública, a autobiografia de Paulo Honório. O que de interessante tem esse livro, se nem ao menos, como o próprio narrador diz, possui uma boa escrita?
Segundo Antonio Candido (1992), São Bernardo é uma espécie de confissão pública. Através dessa confissão, Paulo Honório parece buscar sua remissão e reconciliação. Pereira (2004), novamente mencionando Foucault (1979), diz que durante muito tempo o indivíduo foi autenticado pela sua relação com os outros, sua família, seus amigos, etc. Posteriormente, estendendo-se até a modernidade, isso se modifica. Esse indivíduo passa a ser autenticado pelo discurso de verdade que é capaz ou obrigado a ter sobre si mesmo. Nesta perspectiva, a confissão ocupa o centro dos procedimentos de busca da verdade e de individualização impostos sobre a pessoa. Ora, “[...] o que é a declaração de renda, aparentemente voluntária, feita a Receita Federal senão uma confissão?” (PEREIRA. 2004, p.128).
Obtém-se uma espécie de bônus com a verdade obtida numa confissão. Como se aquele que se confessa, por fazê-lo, já estivesse livre. Ao contrário, contudo, segundo Pereira (2004), há nesse juízo uma inversão.
É necessária uma representação muito invertida do poder, para nos fazer acreditar que é de liberdade que nos falam todas essas vozes que há tanto tempo, em nossa civilização, culminam a formidável injunção de devermos dizer o que somos, o que fazemos, o que não concordamos, o que foi esquecido, o que escondemos, o que se oculta [...] (FOUCAULT apud PEREIRA. 2004, p.129).
Portanto, a confissão está ligada ao poder e à verdade, sendo também um processo de discurso. O sujeito que fala coincide com o sujeito do enunciado. É também um processo que se desenrola numa relação de poder entre aquele que confessa e o que “escuta”, mesmo que não seja presencial, no caso, o leitor.
Depois dos dois primeiros capítulos metalingüísticos, o narrador começa sua autobiografia, e logo no terceiro capítulo ele inicia uma confissão: “Começo declarando que me chamo Paulo Honório, peso 89 kg e completei 50 anos pelo São Pedro” (p.15). A palavra “declarar” pertence à esfera jurídica, os próprios dicionários colocam-na como sinônimo de “confessar”. Seu próprio significado produz em seu interlocutor a certeza de que o sujeito está a dizer a verdade. Para Paulo Honório, órfão desde muito cedo, burguês que aprendeu tudo sozinho, o único lugar onde pode buscar a verdade sobre si é no exame confessional de si mesmo (PEREIRA, 2004).
São Bernardo parece ter uma abertura para o reconhecimento do outro como interlocutor. Para explicar isso melhor, Pereira (2004) toma a confissão católica como exemplo: nesse procedimento, além daquele que confessa, existe aquele que recebe a confissão, o padre, representante de Deus. O padre é, neste caso, uma instância de poder, ele está numa situação de superioridade. Na confissão de Honório, essa instância é virtual e abstrata. Reconhecer que vai publicar sua confissão é reconhecer o público leitor que vai julgá-lo, punindo-o ou perdoando-o. “As pessoas que me lerão terão, pois, a bondade de traduzir em linguagem literária, se quiserem” (S.Bernardo. 2007, p.13).
Paulo Honório pede a participação do leitor de literatura, e, neste momento, o texto se abre para outro. Paulo Honório se rende à literatura e ao seu leitor. O espaço da literatura é, pois, um espaço onde Madalena era uma interlocutora ativa, basta lembrar que ela é escritora de cartas e resenhas literárias. Reconhecer o espaço da literatura é reconhecer, mesmo que tardiamente, as razões de Madalena. Sendo assim, Honório confere à literatura um importante estatuto, o de lugar de denúncia, lugar de resolução de seus litígios, elevando-a a uma condição superior.
Portanto, existe claramente uma questão de poder, como explicou Foucault (1979), não só nos fatos que Paulo Honório narra, mas também na proposta lingüística do livro. Graciliano inverte a relação de poder dando ao leitor de literatura superioridade no discurso de Paulo Honório, que representa tanto uma classe oligárquica em decadência quanto o burguês em ascensão. Ao mesmo tempo, nota-se a intenção subentendida de Graciliano Ramos em considerar a arte enquanto meio de repensar sutilmente a ordem social das coisas na medida em que adota a literatura enquanto linguagem que traduz a particularidade humana não só como razão, mas como um emaranhado de conflitos internos indissociáveis do homem, no qual a confissão e denúncia expressa uma tentativa de reconciliação do homem consigo mesmo e a remissão, mediante a presença de um processo de humanização que se demarca com o desenvolvimento da escrita das memórias de Paulo Honório.
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ABSTRACT: This article intends to analyze the power relations in the social and psychological writing in São Bernardo, of Graciliano Ramos, describing the humanization process that the characters gone through and the relations between the author/narrator and his possible readers.
Keywords: Foucault, Marcuse, power, humanization, complaint