Olá, pessoas que andam acompanhando o blog.
Fico imensamente feliz de saber que vocês aparecem por aqui para saberem do que é que estamos falando.
Recebi vários elogios ao blog e fico feliz de saber que o trabalho que iniciamos aqui não está sendo em vão.
Para finalizar o ano com chave de ouro, escolhi postar para vocês hoje um texto que acho de extrema importância para a arquitetura e o urbanismo. O Manifesto de Gilles Ivain, Formulário para Um Novo Urbanismo. O Gilles Ivain foi um cara muito importante na Internacional Situacionista, um movimento que pregava um novo urbanismo. Este manifesto que vocês lerão a seguinte, foi escrito em 1953 e é um dos textos fundadores do Movimento Situacionista. Falarei dos Situacionistas e da Internacional constantemente por aqui.
Bom, fiquem com o texto.
Um feliz ano novo para todos!
Gabriela de Matos.
Formulário para um Novo Urbanismo
Senhor, sou do outro país.
Percorrer a cidade é entediante, já não existe mais templo do sol. Por entre as pernas das passantes, os dadaístas queriam encontrar uma chave inglesa, e os surrealistas uma taça de cristal. Não deu certo. Sabemos ler nos rostos todas as promessas, último estado da morfologia. A poesia dos cartazes durou vinte anos. Percorrer a cidade é entediante, é preciso fazer um tremendo esforço para descobrir ainda algo de misterioso nas tabuletas da rua, último estado do humor e da poesia:
Banhos-Duchas dos Patriarcas
Máquinas de cortar carnes
Zoológico Nossa Senhora
Farmácia dos Esportes
Alimentação dos Mártires
Cimento translúcido
Serraria Mão-de-Ouro
Centro de recuperação funcional
Ambulância Santa-Ana
Quinta Avenida Café
Rua dos Voluntários Prolongada
Pensão de família no quintal
Hotel dos Estrangeiros
Rua Selvagem
E a piscina da Rua das Mocinhas. E a delegacia de polícia da Rua do Encontro. A clínica médico-cirúrgica e a agência de emprego grátis do cais dos Ourives. As flores artificiais da Rua do Sol. O Hotel dos Porões do Castelo, o Bar do Oceano e o Café do Vai-e-vem. O Hotel da Época.
E a estranha estátua do Dr. Philippe Pinel, benfeitor dos débeis mentais, nas últimas noites de verão. Explorar Paris.
E você, esquecida, suas lembranças destruídas por todos os lamentos do mapa mundi, abandonada no Caves Rouges de Pali-Kao, sem música e sem geografia, já não partindo para a fazenda onde as raízes pensam na criança e onde o vinho termina em fábulas de calendário. Agora, está terminado. Você não verá mais a fazenda. Ela não existe.
É preciso construir a fazenda.
Todas as cidades são geológicas, e não se pode dar três passos sem esbarrar em fantasmas, armados de todo o prestígio de suas lendas. Evoluímos numa paisagem fechada cujos pontos de referência nos remetem sempre ao passado. Certos ângulos móveis, certas perspectivas fugazes permitem-nos entrever concepções originais do espaço, mas essa visão permanece fragmentária. É preciso procurá-la nos lugares mágicos dos contos folclóricos e dos textos surrealistas: castelos, muros intermináveis, barezinhos esquecidos, caverna do mamute, espelho dos cassinos.
Essas imagens obsoletas conservam um certo poder de catálise, mas é quase impossível empregá-las num urbanismo simbólico sem rejuvenescê-las, atribuindo-lhes um novo sentido. Nosso imaginário povoado por velhos arquétipos acabou ficando muito atrás das máquinas aprimoradas. As diversas tentativas de integrar a ciência moderna em novos mitos permanecem insuficientes. O abstrato tem invadido todas as artes, em particular a arquitetura de hoje. O fato plástico em estado puro, sem anedota mas inanimado, descansa os olhos e os refresca. Para além encontram-se outras belezas fragmentárias e, cada vez mais distante, a terra das sínteses prometidas. Cada qual hesita entre o passado que vive no afetivo e o futuro já morto.
Não prolongaremos as civilizações mecânicas e a arquitetura fria cujo termo são os lazeres maçantes.
Nos propomos a inventar novos cenários móveis. (...)
A escuridão recua diante da luz artificial e o ciclo das estações, diante das salas climatizadas: a noite e o verão perdem o encanto, e a aurora desaparece. O homem das cidades julga se afastar da realidade cósmica e por isso já não sonha. O motivo é evidente: o sonho tem seu ponto de partida na realidade e nela se realiza.
O último estágio da técnica permite o contato permanente entre o indivíduo e a realidade cósmica, uma vez que elimina seus aspectos desagradáveis. O telhado de vidro deixa ver as estrelas e a chuva. A casa móvel gira com o sol. As paredes de correr permitem que a vegetação alastre-se pela vida. Montada sobre rodas, uma casa pode avançar pela manhã até o mar e voltar à noite para a mata.
A arquitetura é o meio mais simples de articular tempo e espaço, de modular a realidade, de fazer sonhar. Não se trata somente de articulação e de modulação plásticas, expressão de uma beleza fugaz. Mas de modulação influencial, que se inscreve na curva eterna dos desejos humanos e do progresso na realização desses desejos.
A arquitetura de amanhã será portanto um meio de modificar os atuais conceitos de tempo e de espaço. Será um meio de conhecimento e um meio de agir.
O complexo arquitetônico será passível de modificação. Seu aspecto pode mudar em parte ou totalmente, segundo a vontade de seus moradores. (...)
As coletividades do passado ofereciam às massas uma verdade absoluta e exemplos míticos indiscutíveis. A entrada da noção de relatividade no espírito moderno permite conjeturar o lado EXPERIMENTAL da próxima civilização, ainda que o termo não me seja satisfatório. Digamos mais flexível, mais "divertido". Sobre as bases dessa civilização móvel, a arquitetura será — pelo menos no início — um meio de experimentar as mil maneiras de modificar a vida, em busca de uma síntese que só pode ser lendária.
Uma doença mental invadiu o planeta: a banalização. Todos estão hipnotizados pela produção e pelo conforto — esgoto, elevador, banheiro, máquina de lavar.
Esse estado de fato, que nasceu de um protesto contra a miséria, ultrapassa seu objetivo primeiro — libertar o homem das preocupações materiais — para se tornar uma imagem obsessiva no imediato. Entre o amor e o triturador automático de lixo, a juventude de todos os países fez sua escolha e prefere o triturador. Uma reviravolta completa das mentes tornou-se indispensável, pela revelação de desejos esquecidos e pela criação de desejos inteiramente novos. E por uma propaganda intensiva em favor desses desejos.
Já sinalizamos a necessidade de construir situações como um dos desejos básicos sobre os quais seria estabelecida a próxima civilização. Essa necessidade de criação absoluta sempre esteve ligada à necessidade de jogar com a arquitetura, o tempo e o espaço. (...)
Um dos mais destacáveis precursores da arquitetura continuará sendo De Chirico. Dedicou-se aos problemas das ausências e presenças através do tempo e do espaço.
Sabe-se que um objeto, não percebido conscientemente durante uma primeira visita, provoca, por sua ausência nas visitas seguintes, uma impressão indefinível: por uma correção no tempo, a ausência do objeto se faz presença sensível. Mais precisamente: embora fique geralmente indefinida, a qualidade da impressão varia segundo a natureza do objeto retirado e a importância que o visitante lhe confere, o que pode ir da alegria serena ao terror (pouco importa que no caso em questão o veículo do estado de alma seja a memória. Só escolhi esse exemplo por comodidade).
Na pintura de Chirico (período das Arcadas) um espaço vazio cria um tempo bem preenchido. É fácil imaginar o futuro que reservaremos a tais arquitetos e quais serão suas influências sobre as multidões. Hoje, só nos resta o desprezo por um século que relega semelhantes maquetes a pretensos museus.
Essa nova visão do tempo e do espaço que será a base teórica das construções futuras ainda não está formulada e nunca o estará completamente antes que se experimente o comportamento em cidades destinadas a essa finalidade, onde estariam reunidas sistematicamente, além de estabelecimentos indispensáveis a um mínimo de conforto e de segurança, construções marcadas por um grande poder evocador e influente, edifícios simbólicos figurando os desejos, as forças, os acontecimentos passados, presentes e futuros. À medida que desaparecem os motivos de apaixonar-se, se faz mais urgente uma ampliação racional dos antigos sistemas religiosos, dos velhos contos e sobretudo da psicanálise, em proveito da arquitetura.
De certa forma, cada qual habitará sua "catedral" pessoal. Haverá edifícios que farão sonhar melhor que as drogas, e casas onde só se poderá amar. Outros atrairão os viajantes de forma irresistível...
Pode-se comparar esse projeto aos jardins chineses e japoneses pintados em trompe l'oeil — com a diferença de que estes jardins não são desenhados para neles se viver completamente — ou ao labirinto ridículo do Jardin des Plantes em Paris, à entrada do qual se pode ler um aviso, o cúmulo da estupidez, Ariadne desempregada: É proibido brincar no labirinto.
Essa cidade pode ser imaginada sob a forma de uma reunião arbitrária de castelos, grutas, lagos etc. Seria o estágio barroco do urbanismo, considerado como meio de conhecimento. Mas essa fase teórica já está ultrapassada. Sabemos que é possível construir um prédio moderno nada parecido com um castelo medieval, mas que conserve e multiplique o poder poético do Castelo (pela manutenção de um mínimo estrito de linhas, pela transposição de algumas outras, pela localização das aberturas, pela situação topográfica etc).
Os bairros dessa cidade poderiam corresponder aos diversos sentimentos que encontramos por acaso na vida cotidiana.
Bairro Bizarro — Bairro Feliz, reservado em especial à habitação — Bairro Nobre e Trágico (para crianças bem comportadas) — Bairro Histórico (museus, escolas) — Bairro Útil (hospitais, lojas de ferramentas) — Bairro Assustador etc. E um Astrolário que reuniria as espécies vegetais de acordo com as relações que elas mantêm com o ritmo estelar, jardim planetário comparável àquele que o astrônomo Thomas tenta estabelecer em Viena no local chamado Laaer Berg. Indispensável para dar aos habitantes uma consciência do cósmico. Talvez também um Bairro da Morte, não para ali morrer mas para se viver em paz, e, neste caso, penso no México e num princípio de crueldade na inocência, que aprecio cada dia mais.
O Bairro Assustador, por exemplo, supriria com vantagem os buracos, bocas de inferno que muitos povos possuíam outrora em suas capitais; simbolizavam as forças maléficas da vida. O Bairro Assustador não teria a necessidade de conter perigos reais, como armadilhas, calabouços ou minas. Teria um acesso complicado, uma decoração horrorosa (apitos estridentes, sinais de alarme, sirenes periódicas em intervalos irregulares, esculturas monstruosas, móbiles mecânicos com motor, chamados Auto-Móbiles) e pouca iluminação à noite, embora violentamente iluminado de dia pelo uso abusivo do fenômeno de reverberação. No centro, a "Praça do Móbile Medonho". A superabundância de um produto no mercado provoca a queda de seu valor: a criança e o adulto aprenderiam pela exploração do Bairro Assustador a não temer os fatos angustiantes da vida, mas, ao contrário, divertiriam-se com eles.
A principal atividade dos habitantes será a DERIVA CONTÍNUA. A mudança de paisagem de hora em hora vai levar ao completo desenraizamento. (...)
Mais tarde, pelo inevitável desgaste dos gestos, essa deriva deixará em parte o domínio do vivido pelo da representação. (...)
A objeção econômica não resiste à primeira olhada. É sabido que, quanto mais um lugar é destinado à liberdade de jogo, mais influi sobre o comportamento e maior é sua força de atração. Prova disso é o imenso prestígio de Mônaco e de Las Vegas. E de Reno, caricatura da união livre. Trata-se contudo de meros jogos do dinheiro. Essa primeira cidade experimental viveria com fartura de um turismo tolerado e controlado. As subseqüentes atividades e produções de vanguarda surgiriam por si mesmas. Em alguns anos ela se tornaria a capital intelectual do mundo, e seria em qualquer parte reconhecida como tal.
Gilles Ivain